Perdido em algum canto da minha mente eu tenho certeza que existe um dom musical esperando para ser descoberto. Seria capaz alguém gostar tanto de uma coisa e mesmo assim não ter aptidão nenhuma para essa mesma coisa. Será possível viver a beira da sociedade, recitando cantigas destroçadas de sua própria criação em tons monossilábicos que não admite desafino? Será possível odiar aqueles que você escolheu para ter do seu lado. Escolhas feitas com tanto esmero e carinho que agora parecem tão vazias. Você vive sem ela?
Entrou no quarto como quem não queria nada. O olhar distante e as mãos geladas não deixavam mentir, no entanto. Ele estava lá por um bom motivo. Qual era o motivo? Dane-se se eu sei. Só sei que estava lá e que tinha um motivo. Sentou-se rapidamente na cama e tirou os sapatos. Movimentos lentos e metódicos como quem espera que alguma coisa lhe traga de volta a realidade. Primeiro jogou os sapatos para longe, direito e esquerdo. Depois jogou as meias para longe, direita e esquerda. Olhou para o teto e espremeu os olhos até que os mesmos se fechassem. Movimento continuo, abriu-os, respirou fundo e se deitou. As lagrimas não demoraram a correr, sem soluço nem palpitação. Lagrimas que escorriam como se estivessem em seda pura, fazendo traçados por entre as imperfeições microscópicas do seu rosto. Colocou o braço no rosto a fim de se esconder de si mesmo, mergulhar na escuridão e desaparecer por completo. Não conseguiu. Dois minutos, um minuto, dez minutos. Tentou contar a própria respiração sem sucesso e de repente se levantou. Deu um pulo tão repentino e tão desajeitado que quase caiu para o lado. Tirou a camisa e nu da cintura para cima foi tomar banho. Esqueceu de tirar a calça quando entrou no box. De súbito notou e então retirou-a ali mesmo. Primeiro a perna direita depois a esquerda. Jogou-a por cima da proteção e fez o mesmo com a cueca. Nu, totalmente vulnerável ainda com as lagrimas secas a assombrar-lhe ligou o chuveiro. A água caiu em suas costas como se fosse um presente dos deuses. Um elixir para sua alma. Um balsamo a sua inquietude. Se banhou por uma eternidade de 10 minutos e quando terminou sentou de toalha em uma cadeira ao lado da janela que dava para uma vista empobrecida da rua, transversal a cama. Lá, sentado, somente de toalha, começou a observar o movimento noturno daquela pacata ruazinha. Nada demais, algumas mulheres e homens voltando de trabalhos honestos, alguns vagabundos sem más intenções passando... Bêbados... Moradores de rua. Cansou do não extraordinário e jogou a toalha na cadeira. Ela caiu no chão, ele fingiu que não tinha visto. Deitou-se nu e se cobriu. As lagrimas não faziam mais sentido. Não tinha dormido mas sabia que o pesadelo mal tinha começado.